Enquanto 1.151 presos provisórios e jovens internos em São Paulo exerciam seu direito de voto no segundo turno das Eleições 2024, em seções montadas dentro de presídios e unidades de internação, a Câmara dos Deputados aprovava uma lei que, a partir de agora, pode tirar esse mesmo direito de milhares de outros brasileiros nos próximos pleitos. A contradição é gritante: um sistema que garante o voto a quem ainda não foi condenado, enquanto políticos discutem retirar esse direito por pura lógica de punição — mesmo antes da justiça decidir.
Como o voto funcionou nos presídios de São Paulo
No dia 27 de outubro de 2024, 26 seções eleitorais especiais foram instaladas em sete municípios — Diadema, Franca, Guarulhos, Ribeirão Preto, São Bernardo do Campo, São Paulo e Taubaté — para atender aos eleitores que ainda aguardam julgamento. O Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo (TRE-SP) fez isso seguindo a Resolução TSE 23.736/2024, que reforça o direito constitucional previsto no artigo 15, inciso III, da Constituição Federal. A regra é simples: só perde o direito de votar quem foi condenado em sentença transitada em julgado. Presos provisórios? Ainda são inocentes. E, por isso, podem votar.
Em todo o país, cerca de 6.000 presos provisórios estavam aptos a votar nas eleições municipais de 2024, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). São Paulo liderava com 2.562 eleitores nessa condição, seguido por Espírito Santo (857), Bahia (612) e Rio Grande do Sul (591). A logística não é simples: urnas, fiscais, segurança e transporte de documentos são organizados com meses de antecedência. Desde 2010, o TSE mantém esse sistema — uma das poucas políticas públicas no Brasil que realmente tenta manter a cidadania viva mesmo dentro das grades.
A emenda que pode mudar tudo
Mas em 18 de novembro de 2025, tudo mudou. A Câmara dos Deputados aprovou, em regime de urgência, uma emenda ao Projeto de Lei Antifacção (PL 5582/2025), proposta pelo deputado Marcel van Hattem (Novo-RS). A emenda proíbe o alistamento eleitoral de pessoas em prisão provisória e cancela os títulos de quem já está inscrito. O argumento? Que a privação da liberdade e o exercício do voto são incompatíveis. "Não é antecipação de pena. É reconhecimento de um limite fático e moral da cidadania", disse Van Hattem em plenário.
A oposição, por sua vez, apoiou a medida como forma de "reduzir custos e riscos desnecessários". Mas o que parece lógico para alguns é um choque para o direito constitucional. O voto não é um privilégio. É um direito. E a presunção de inocência não é uma formalidade — é o alicerce da justiça brasileira. Tirar o direito de votar de alguém que ainda não foi julgado é como negar o direito à defesa antes da audiência.
O impacto real — e o simbólico
Estatisticamente, o impacto desses votos é quase nulo. Em 2022, cerca de 11.363 presos provisórios compareceram às urnas. Mesmo que todos tivessem votado em um único candidato, não alterariam o resultado: Lula venceu Bolsonaro por 1,8 milhão de votos. Os 6.000 votos de 2024 representam menos de 0,007% do eleitorado nacional. Então, por que essa emenda foi aprovada com tanta pressa?
A resposta está no discurso. A medida não é sobre eleição. É sobre controle. É sobre enviar uma mensagem: quem está preso, mesmo sem condenação, não merece ser considerado plenamente cidadão. É um gesto político, alinhado com o discurso de endurecimento penal que ganha força em vários países. E, como sempre, é o mais vulnerável quem paga o preço.
Os riscos jurídicos que ninguém quer falar
Espera-se que a emenda seja analisada pelo Senado Federal nos próximos meses. Mas especialistas já alertam: ela pode ser derrubada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). A Constituição é clara: só perde direitos políticos quem foi condenado com sentença final. A prisão provisória é uma medida cautelar, não uma punição. Tirar o voto nesse estágio é, na prática, aplicar uma pena sem julgamento — o que viola o princípio da legalidade e da presunção de inocência.
Na prática, isso pode gerar uma avalanche de ações judiciais. Se a emenda virar lei, os presos provisórios que tiverem seus títulos cancelados poderão recorrer à Justiça Eleitoral. E o TSE, que já garantiu esse direito por 14 anos, provavelmente irá contestar. O risco? Um conflito institucional sem precedentes entre o Legislativo e o Judiciário.
Um direito que não se nega por conveniência
Na verdade, o voto dos presos provisórios não é um privilégio. É um teste. Um teste para o que o Brasil realmente acredita: que a justiça deve ser imparcial, mesmo quando o réu está atrás das grades. Que a democracia não se esvazia quando o eleitor é marginalizado. Que a cidadania não é um prêmio para os que se comportam bem, mas um direito inalienável — mesmo para os que erraram.
Quem vota em um presídio não está pedindo favores. Está dizendo: "Eu ainda sou parte deste país". E se o Congresso aprovar essa emenda, não será a democracia que se fortalece. Será o medo.
Frequently Asked Questions
Por que presos provisórios ainda podem votar se estão presos?
Porque a Constituição brasileira só suspende direitos políticos após condenação definitiva — ou seja, quando não resta mais recurso. A prisão provisória é uma medida cautelar, não uma punição. Quem está preso sem julgamento ainda é considerado inocente pela lei, e por isso mantém todos os direitos civis, incluindo o voto. Isso é essencial para garantir o princípio da presunção de inocência.
Quantos presos provisórios votaram nas eleições de 2024?
Cerca de 6.000 presos provisórios votaram em todo o Brasil nas eleições municipais de 2024, segundo o TSE. Em São Paulo, foram 2.562 eleitores, o maior número do país. No segundo turno presidencial de 2022, cerca de 11.363 compareceram às urnas. Apesar do número, esse grupo representa menos de 0,007% do eleitorado total — impacto mínimo, mas simbólico.
Essa nova lei pode ser derrubada pela Justiça?
Sim. Especialistas em direito eleitoral afirmam que a emenda ao PL Antifacção entra em conflito direto com a Constituição, que garante o voto até a condenação final. O Supremo Tribunal Federal já protegeu esse direito em decisões anteriores. Se a lei for aprovada no Senado, é quase certo que haverá ações no STF — e a tendência é que ela seja suspensa ou invalidada por violar direitos fundamentais.
Quais estados têm mais presos provisórios aptos a votar?
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023, os estados com maior número de presos provisórios são: São Paulo (2.562), Espírito Santo (857), Bahia (612), Rio Grande do Sul (591), Maranhão (574) e Santa Catarina (249). Esses números refletem não apenas a população carcerária, mas também a eficiência dos tribunais regionais em registrar e organizar o voto nesses locais.
O voto de presos provisórios influenciou resultados eleitorais?
Nenhuma análise estatística sugere que os votos de presos provisórios alteraram qualquer resultado eleitoral. Na eleição presidencial de 2022, a diferença entre Lula e Bolsonaro foi de 1,8 milhão de votos. Mesmo se todos os 11 mil votos dos presos provisórios tivessem ido para um único candidato, não mudariam o resultado. O debate não é sobre números — é sobre princípios.
O que acontece agora com a emenda?
A emenda aprovada na Câmara segue agora para análise no Senado Federal, onde poderá ser alterada, aprovada ou rejeitada. Se for aprovada, entrará em vigor após sanção presidencial. Mas mesmo assim, o TSE e organizações de direitos humanos já anunciaram que recorrerão ao Supremo Tribunal Federal, argumentando que a medida é inconstitucional. O processo pode levar meses — e o voto dos presos provisórios pode permanecer garantido por enquanto.